segunda-feira, 10 de maio de 2021

Inspiring Mondays

A propósito do 1º de Maio, hoje quero contar-vos um conto da minha mãe, a escritora e poeta Maria Gonçalves, inserido no seu livro "O Cheiro da Terra" de 2003.

Nascida em 1936 em S. Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira. Alentejana de alma e coração, veio aos 11 anos para Lisboa onde estudou, cresceu e se tornou uma mulher muito à frente do seu tempo. Dona de uma inteligência e sensibilidade acurada adora contar histórias da sua vida e do seu Alentejo. Aqui fica um pedacinho dela como homenagem ao Dia da Mãe :)

A página de rosto cante assim: "Que a Terra do Alentejo nunca mude de cheiro".

"A Pensão"

"O Ti José estava triste naquele dia. Algo sentia, parecia que tinha uma espinha encravada na garganta. Chorar, não podia, pois foi-lhe ensinado assim que começou a gatinhar, de que um homem não chora, até nem se lembra se algum dia chorou!

Ah! Lembrou-se agora, que sim, naquele dia tão distante, quando lhe vieram dizer que o pai tinha morrido! Correu para trás da casa, e aí sim, aí chorou.

Limpou apressadamente os olhos aos punhos da camisa e apresentou-se perante a mãe.

Filho, diz ela, ainda és novo para trabalhar, mas terás de compreender a partida do teu pai. Tens que sair da escola, vais trabalhar, porque iremos ter falta de dinheiro.

E foi assim que José, garoto, começou a guardar as ovelhas, na herdade do senhor Jaime da farmácia.
Levantava-se antes do nascer do sol, comia umas sopas de leite, a patroa punha-lhe dentro do alforge um naco de pão, cozido havia mais que oito dias! Juntava-lhe um pedaço de toucinho salgado e só regressava com o pôr do sol.

Levou anos a fazer a mesma coisa, aí uns sessenta, talvez! Sabia de cor os nomes das ovelhas, pois fora ele quem lhes dera os nomes. Até sabia os dias exatos dos seus nascimentos.
Também tinha o Fiel, o seu velho cão, que conhecia o rebanho tão bem como ele.

Ti José ergueu a cabeça e despertou com o barulho que a charanga fazia ouvir.
O sol brilha. Os campos estão cheios de trigo e de papoilas! Ora, os seus olhos já viram tantas searas e tantas papoilas! Agora não podem muito, estão cansados, já veem muito pouco! Precisava de uns óculos, mas como? A reforma que recebe, nem para o tabaco chega, mas também há muito tempo que não fuma! O dinheiro não chega para vícios, diz ele algumas vezes, com um pouco de escárnio. Uns copitos ainda lá vão de volta e meia, mas caramba, um homem às vezes não resiste.

A charanga chegou ao adro da igreja. O barulho aumentou. Ti José, olhe que hoje é o primeiro dia de Maio, dia do trabalhador, venha!

Os meus dias de trabalho já lá vão, hoje é o meu dia de descanso, respondeu com um sorriso amarelo."


Dedico esta história aos meus avós maternos, António Marques e Hermínia Zourego, que tiveram de deixar o Alentejo com 5 filhos, à procura de uma vida melhor na grande cidade.

O meu avô foi várias vezes preso pela PIDE por reivindicar melhores salários e condições de trabalho para ele e colegas. 

Também dedico este texto aos trabalhadores migrantes do Concelho de Odemira que vivem em condições deploráveis para que nós possamos comer as amoras, framboesas e mirtilos colhidos por eles.

Pouco mudou desde o tempo dos meus avós. Apenas a cor da pele dos trabalhadores.

Uma excelente semana para todos nós!

7 comentários:

  1. Obrigada por esta partilha professora. Uma história tão forte, como tantas que o nosso país tem guardadas e ainda vivas, e espero que fiquem vivas para sempre. <3

    ResponderEliminar
  2. Adorei ler o conto, com pormenores muito ricos e vívidos, e saber mais sobre a história de família. 😍💓
    Que bela partilha, obrigada!

    É triste que se tenha ignorado até agora esta condição dos migrantes. Espero que agora que todos têm os olhos ali postos (antes decidiam olhar para outro lado) que lhes proporcionem as condições de vida e trabalho merecidas.

    Boa semana!
    Beijinho grande

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois é Carlota. E não são só estes. :( A agricultura intensiva, infelizmente, é feita de pessoas na beira da escravatura (quando não em plena escravatura). Vivi no Alentejo alguns anos e cheguei a denunciar situações de ilegalidade e nunca as autoridades fizeram coisa alguma. A apanha da azeitona, particularmente, está repleta de ilegalidades (humanas e ambientais) e péssimas condições para os trabalhadores. Enfim... é muito triste.
      Beijinhos Carlota! Desculpa o desabafo, é um assunto que me incomoda bastante. :)

      Eliminar
  3. Sabemos que nada irá mudar, porque há demasiados interesses em jogo, menos os dos trabalhadore.
    No entanto, aqui fica a chamada de atenção.

    ResponderEliminar
  4. Obrigada pelos comentários, não esquecer que infelizmente há muita gentinha que está espreitando para que o tempo volte para trás, atenção muita atenção, bjs para todas.

    ResponderEliminar
  5. Que lindo conto sobre o Alentejo. Faz-me lembrar os que a minha avó me conta há anos, e os poemas que também escreve. É incrível o que estas pessoas maravilhosas têm oara nos contar ❤ Obrigada Professora, pela partilha. E obrigada D. Maria ❤

    ResponderEliminar
  6. Parabéns querida Maria. Um conto muito bonito que reflete bem como a vida para muitos é dura! Um grande beijinho :)

    ResponderEliminar